Já que o tema do blog é todo relacionado com o inferno, aí vai um texto que escrevi para meu antigo blog, quando ainda era operário da Honda. Hoje, sigo como operário, só que agora, da notícia. Embora seja um texto longo, vale ser retratado, já que aquele fim de semana foi terrível, inacreditável até hoje, ou infernal, como diriam alguns.
Onde estava você no 1º de maio de 1994? Fatalmente você já respondeu a essa pergunta. Para mim, aquele final de semana foi atípico. Foi uma das únicas corridas que não assisti (a outra foi a do Grande Premio do Japão, vencida por Damon Hill, no final do ano, em que eu fui batido pelo sono), mas foi por motivo de trabalho. Aos 14 anos, estava trabalhando esporadicamente, entregando jornais para o Good Bom, e isso me consumiu todo o final de semana, de sexta a domingo, último dia, até as 11:00. Gostaria muito de ter assistir o Grande Premio de San Marino, já que era o momento ideal para o início da virada para Ayrton Senna. Estava 20 a 0 para Michael Shumacher, com o canhão Benetton Ford B194. Senna, com a Williams Renault FW16, já não era o poderoso carro que dominou a Fórmula 1 em 92 e 93, com Mansell e Prost, respectivamente.
O ano de 1994 começou de forma dura, com Senna criticando o carro, e sentindo falta da antiga equipe McLaren. No primeiro Grande Premio do ano, em Interlagos, Senna largou na pole, com Schumacher ao seu lado, e toda a multidão esperando por um banho do carro nº 2 da Williams. Naquela corrida, Schumacher largou mal e perdeu a posição para Jean Alesi, com Ferrari. O alemão da Benetton superou o ferrarista ao final da segunda volta e foi à caça de Ayrton. Senna ponteou a corrida, porém sempre pressionado por Schumacher, até que veio o primeiro pit stop. Schumacher entrou em segundo e saiu em primeiro. Daí por diante, foi abrindo uma vantagem, entre cinco e seis segundos sobre Senna, a ponto do brasileiro errar na subida da junção. Fim de prova para Ayrton, a multidão vai embora decepcionada, e Schumacher soma os primeiros 10 pontos.
Em Aida, circuito japonês, novamente a disputa na classificação foi protagonizada pelos dois, comprovando que seria a briga pelo título seria entre a Williams Renault nº 2 contra a Benetton Ford nº 5. Dividiram a primeira fila mais uma vez, com Senna cravando a pole nº 64 da carreira. Era chegada a hora de Senna vencer a primeira com o carro azul e branco da Williams. Mas a expectativa durou apenas alguns segundos. O brasileiro largou mal e Schumacher tomou a ponta, e Hakkinen tocou na traseira do carro de Ayrton. Com isso, o alemão dominou tranquilamente, faturou a segunda no ano e abriu 20 pontos na classificação.
Em Ímola, era a hora da virada, era o momento do início da reação. Não pude assistir àquele Grande Premio. Hoje avaliando, não sei se foi bom ou ruim. Mas tive que trabalhar, ganhar um dinheirinho, comprar minhas coisas e ajudar em casa, isso com quatorze anos. Abri mão de uma classificação e corrida nas manhãs de sábado e domingo, respectivamente, por esse objetivo. Pensei: “Vou torcer em pensamento, chegar em casa e comemorar a vitória do Senna!”. Acompanhei pelos telejornais o acidente pavoroso com Rubens Barrichello, na sexta-feira, dia 29. Foi assustador, até para mim, que desde que comecei a acompanhar a Formula 1, no final de 1986, nunca tinha visto nada igual. O mais grave que havia visto até então foi o acidente do Piquet em Indianapolis, e só. Mas o acidente de Barrichello resultou além do nariz quebrado do piloto, a ausência do brasileiro da qualificação e corrida, e um grande susto em todos no paddock. Senna foi o primeiro a se pronunciar e a se posicionar, tranquilizando a todos de que Rubens estava bem. Foi um dia bem tenso, acredito.
Sábado, dia 30, a kombi do supermercado passou para me apanhar por volta das 8 horas. Não pude nem começar a ver o treino, mas era por uma boa causa. Fiquei fora o dia inteiro. E naquela época, ainda sem internet, só conseguiria informações a respeito quando chegasse em casa. Hoje em dia, em qualquer lan house, voce consegue se informar sobre tudo. Sabia que Senna tinha tudo para ser o pole position, o que de fato se confirmou, novamente com Schumacher em segundo. Não sabia, porém, que aquele treino entrou para a história de forma fatídica, com a primeira vítima fatal depois de 8 anos. Em casa ninguém havia acompanhado ao treino, e tive que esperar o Jornal Nacional dar a fatídica notícia, na voz do Cid Moreira, se não me engano: “Tragédia na Fórmua 1″. Não esperava que fosse morte, ninguém na verdade espera pelo pior.
Mas o pior já havia acontecido. Sinceramente, aos 14 anos, embora acompanhasse muito sobre automobilismo, desconhecia o austríaco Roland Ratzemberger, embora tivesse muita simpatia pelo carrinho roxo MTV (canal que tinha muita vontade de assistir, mas muita dificuldade em sintonizar). Aquela imagem no telejornal da batida na curva Villeneuve, e a forma como a cabeça do piloto ficou, sem sustentação alguma, além dos paramédicos tentando reanimar o austríaco, foi chocante. Jamais imaginaria ver isso.
Morte? Isso era coisa dos tempos antigos, década de 60, 70 no máximo. Certamente ninguém jamais pensou que tal fato viesse a ocorrer. Acreditei que nesses casos as corridas fossem canceladas, ou adiadas, em respeito à vítima fatal. Mas também me surpreendi, percebi desde criança que para muitos, o dinheiro, os interesses comerciais, prevalecem sobre a vida humana, os sentimentos, a vida, a morte…
Senna, já com a pole position garantida, foi o único a visitar o local do acidente e presenciar o que de fato aconteceu com Roland. Pelo que eu li dos jornais e revistas da época, foi duramente criticado pelas “altas autoridades” da Fórmula 1, leia-se Max Mosley e Bernie Ecclestone. Acredito que tenha sido um momento dramático na vida de todos que estavam ali. Muitos estreando, alguns experientes, mas por mais que corressem risco de morte, devido à profissão, ninguém, absolutamente ninguém acreditava, e aceitava que a morte estava ali, bem perto.
Foi com esse clima de total tensão, tristeza, que a muito tempo não ocorria na categoria, que se iniciou o dia da corrida, 1º de maio. Um grave acidente na sexta, uma morte ao sábado. O bom senso diria que, na minha opinião, em uma situação com essa, ou cancela, adia, mas que não se realizasse tal disputa.
No domingo, fui cumprir meu último dia da minha empreitada como entregador de jornais. Fui com o coração na mão. Com medo de que acontecesse algo de grave com algum piloto, queria que o domingo não fosse negro, como nos dias anteriores. Entreguei os jornais perto do bairro onde moro e aproveitei que vi uma tv ligada em uma casa, fui dar uma espiada, vi vários carros lentos. Não imaginei nada de grave, só queria que tudo e todos estivessem bem, e que o Senna vencesse aquela “carrera”. Fiz o meu trabalho, encerrei por volta das 11horas, ganhei meu dinheirinho e lá fui eu para casa saber se o Ayrton tinha começado a sua reação. Perguntei à minha mãe, assim que cheguei, quem tinha ganho: “Schumacher”, disse ela. Schumacher?? 30 a 0?? ”E o Senna, mãe?” ”O Senna tá no hospital, não sei o que vai ser!” Como assim, pensei, como assim??
Tomei meu banho rápido e fui pra sala ver mais notícias. O plantão dava as notícias a todo o tempo, e quando a Globo mostrou as imagens do acidente, aparentemente acreditei que tudo fosse apenas um susto, pois já tinha visto muitos acidentes, em termos de imagem, piores, como vários da Fórmula Indy. Depois vi as imagens de sangue e notei que tudo era muito sério. As vozes que eu ouvia eram cada vez mais graves, com uma sonoridade muito triste. Roberto Cabrini entrava no plantão e a todo momento frisava que o estado de saúde do Ayrton era muito grave. Lá no fundo eu pensei: "O Ayrton morrer? Como vai ser?"
Por volta de 13:30, não me lembro bem, Cabrini deu o plantão final, e decretou o trágico desfecho. Depois daquele final de semana, não perdi mais nenhuma corrida, até hoje. Não presenciei ao final de semana mais negro da história do automobilismo moderno. Hoje continuo apaixonado pelas corridas, acompanho tudo, seja Nascar, Truck, Indy, Formula 1, kart, tudo. Mas aquelas lembranças jamais serão esquecidas.
Fernando